Joel Pinheiro da Fonseca
Folha
Eu era um membro conformado do grupo dos otários que pagam inteira no cinema. Sim, otário: graças ao desconto concedido a estudantes, idosos e outros, gente como eu pagava mais caro. Mas eis que, neste fim de semana, vim para o lado vantajoso da força: minha operadora de celular tem um convênio com uma rede de salas, o que me valeu o direito à meia. Muito em breve, absolutamente todo frequentador de cinema terá sua meia entrada.
O resultado disso, é claro, não será uma economia para todos, e sim uma entrada que simplesmente custará o dobro. Toda isenção ou desconto estendido a um grupo é pago por aqueles que ficaram de fora. Se ninguém ficar de fora, o benefício se extingue.
EM OUTRO GRUPO – Se já conquistei a meia entrada no cinema, ainda pertenço a outro grupo de otários: os que, sem lobby em Brasília, não terão alíquota especial na Reforma Tributária, e portanto pagarão um IVA mais alto para custear o desconto amigo dos demais.
Justificativas não faltam, a começar pela social: vamos desonerar, por exemplo, os itens da cesta básica. O primeiro sinal de que isso não era uma boa ideia foi a voracidade com que resolveram adicionar produtos à cesta básica, colocando até capacete e tijolo entre os itens necessários para alimentar uma família. A solução foi criar duas cestas, cada uma com sua alíquota especial. Definir qual produto entra em qual cesta promete muita judicialização futura.
A segunda distorção é que o benefício da isenção nunca vai inteiro para o público-alvo, o povo pobre que precisa comer. Uma parte fica com as próprias empresas, que não abatem a isenção completa do preço final do produto. Outra parte vai para a classe média e o rico, que também consomem arroz, feijão e farinha. Isso reduz a parte que sobra ao pobre.
SERIA MAIS JUSTO… – E quem paga a conta desse benefício mal focalizado? Todos os outros setores, que arcarão com um IVA mais alto, além, é claro, de seus consumidores. Seria socialmente mais eficaz arrecadar o imposto da cesta básica normalmente e daí transferir essa arrecadação aos consumidores pobres. Algo me diz, no entanto, que isso não interessaria tanto aos lobistas empresariais.
Até aqui estamos falando das isenções que ao menos têm um verniz social. Outras não têm nem mesmo isso — são a defesa aberta de privilégios corporativistas.
Médicos e advogados com faturamento milionário, o sofrido agro. Será uma boa ideia o Estado criar uma bolsa especial para eles? Depositar todo mês um extra na conta bancária dos médicos que já faturam acima do Simples? É o que vai ocorrer, embora com menos transparência para a opinião pública, posto que não haverá uma transferência do Tesouro para a conta deles.
REFORMA INÓCUA – É deprimente defender a Reforma Tributária nos termos de que “mesmo assim será melhor do que a situação atual”. Isso só indica que ainda há espaço para outros cavarem sua boquinha. Insatisfeitos com a isenção de 60%, representantes do agro já pleiteiam 80%. E se deixarmos, não vão parar até tornar a reforma inócua.
Não se engane: toda vez que o representante de um setor ou classe defende uma alíquota especial para si, o que ele está dizendo é que ele quer tirar seu dinheiro e te tratar como otário, ainda tornando toda a economia menos eficiente e a legislação tributária mais complexa, contrariando a razão de ser da reforma.
Reconhecer isso com clareza é, quem sabe, o primeiro passo para impedi-lo.
Uma reforma tributária justa parece ser uma quimera. Muitos interésses (como falava Brizola) pessoais ou de setores privilegiados são defendidos pela maioria que manda.