Marcus André Melo
Folha
Como a questão das emendas orçamentárias é tratada na literatura comparada? A dificuldade é que elas não existem em muitas democracias, como já mostrei aqui na coluna. No parlamentarismo, a aprovação de uma emenda equivale a um voto de desconfiança no governo. Nos regimes presidencialistas, as emendas adquirem características radicalmente distintas do caso brasileiro, cuja singularidade é a barganha Executivo x Legislativo.
Nos EUA, ela tem lugar nas comissões congressuais: a barganha é intralegislativa. A dinâmica é distinta porque o orçamento é globalmente impositivo nos EUA.
BASES PROGRAMÁTICAS – Nos Estados Unidos, o Executivo não detém a prerrogativa de contingenciar o orçamento premiando a lealdade de sua base como no Brasil. Por que o sistema não degenera em ingovernabilidade fiscal, numa dinâmica tipo “tragédia dos comuns” naquele país e nas democracias parlamentares? A resposta está no sistema partidário.
No parlamentarismo ou no presidencialismo bipartidário, o partido majoritário e seus membros internalizam os custos políticos dos problemas fiscais.
Sob o multipartidarismo estes incentivos são mais fracos, mas ainda assim a formação de coalizões tem bases programáticas sobretudo nos sistemas parlamentares.
SISTEMA FRAGMENTADO – O pior cenário é quando o sistema partidário é fragmentado e localista. O rótulo partidário significa pouco e a sobrevivência política dos parlamentares depende de emendas.
A solução — claramente sub-ótima — para lidar com o dilema é a delegação de poderes para o Executivo federal, o único ator com incentivos fortes para o controle fiscal (mais fraco ou forte conforme a linha ideológica e as crenças dos governos). Foi feito em 1988.
As emendas e a distribuição dos ministérios e dos cargos nas estatais têm papel fundamental para a formação da base parlamentar multipartidária. Emendas mantêm uma relação substitutiva com os ministérios; elas são utilizadas para garantir apoio de partidos não contemplados com ministérios.
DISTORÇÕES ALOCATIVAS – Este arranjo institucional produz distorções alocativas (desigualdade entre beneficiários de gasto; perda de racionalidade de políticas públicas) e malaise crônica pela exposição pública “de como as salsichas são feitas”. Mas permite ganhos de troca entre os interesses localistas de parlamentares e os interesses nacionais do Executivo.
A impositividade das emendas individuais e coletivas aprovadas em 2015 e 2019 reduz o espaço para a barganha, e altera o equilíbrio geral.
Há risco de “tragédia dos comuns” (o montante das emendas é crescente e ameaçador), sobretudo se o Executivo não partilhar o governo com a base. Na ausência de uma transformação no desenho institucional global, o equilíbrio possível (second best) do pós-1988 vem sendo tensionado.