Joel Pinheiro da Fonseca
Folha
Uma manchete de março na Folha: “Inflação dará alívio a pobres e pesará mais na classe média, dizem especialistas”. Nesse e em outros casos — que são comuns na imprensa toda —, a presença dos “especialistas” aumenta ou reduz a confiabilidade do enunciado?
No passado, o especialista era a palavra final. Ele tinha uma formação que o habilitava a opinar com conhecimento de causa. A imprensa fazia sua parte dando espaço. E enquanto a imprensa determinava o debate público — quem estava nela, existia; quem não estava, não existia —, dar voz ao especialista bastava para que ele fosse a autoridade publicamente reconhecida.
AUTORIDADE AUTOMÁTICA -A falta de vozes contrárias dava à voz do especialista uma autoridade automática que, ao menos em tese, era justificada por seu conhecimento.
Havia dois grandes problemas nessa configuração: O primeiro é que o conhecimento dos especialistas é menos certo e seguro do que gostam de transparecer. Esse ponto foi salientado pelo filósofo Michael Sandel em “A Tirania do Mérito”: a suposta expertise de tantos economistas em posições de poder de nada serviu para antever e impedir a crise de 2008.
Podemos lembrar também das conclusões desencontradas e depois revisadas, mas dadas sempre como se emanassem da mais inquestionável Ciência, ao longo da pandemia.
POSIÇÕES DIVERSAS – O segundo problema é que, em questões controversas, sempre há especialistas com posições diversas, e a escolha de quais especialistas ouvir depende de um julgamento do jornal, que embute seu interesse e sua ideologia.
Com as redes sociais, e todo mundo publicando suas opiniões para quem quiser ouvir, o jogo mudou. Apelar para a própria credencial não só não funciona como afasta. Soa arrogante, uma tentativa de vencer na carteirada. Isso quando não envenena o leitor, para quem o vínculo institucional é antes motivo de suspeita.
Isso vale tanto para o debate público quanto para as instâncias de decisão técnica. Cada decisão emitida pelo Banco Central, Anvisa ou Justiça Eleitoral se torna imediatamente objeto de discussão entre os reles mortais aqui embaixo.
EM PÉ DE IGUALDADE – Cada vez mais o público é composto de interlocutores em pé de igualdade, e não ouvintes ou leitores passivos. A mera credencial, sozinha — bem como o espaço na imprensa — não serve como argumento. As pessoas se tornaram mais irracionais? Não. É que, com a existência de alternativas, não dá para contar com sua adesão automática; é preciso persuadi-las.
Isso faz com que a capacidade de persuadir — por escrito e, graças à tecnologia, oralmente — ganhe um novo peso. É o que os antigos chamavam de retórica. A questão é que a habilidade retórica por si não garante a qualidade ou a verdade do discurso; mas ela influi em qual discurso vencerá politicamente.
Hoje, portanto, mais do que ontem, os especialistas devem também ter um pezinho na retórica —que agora inclui os recursos audiovisuais— e mergulhar no debate público.
DEBATE PÚBLICO – Ao contrário do discurso técnico, o debate público tem sempre um quê de antagonismo. Ele precisa chamar a atenção, mexer com as emoções e construir o conhecimento a partir do nível mais elementar, sem pressupor conhecimento prévio do outro lado.
A autoridade não deixou de existir; há pessoas que, em suas áreas, têm a confiança geral. Mas essa autoridade não é automática; depende da construção de uma relação com o público, e não do diploma.
Isso não significa que todo acadêmico ou técnico terá que virar youtuber ou abrir um TikTok. Mas que alguns o façam é imprescindível. O fato de especialistas “dizerem” algo não significa muito; mas “como” eles o dizem pode fazer toda a diferença.